quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A Coroa de Ferro

De onde se sentava não podia enxergar o que viria pela frente. Olhou para o lado. A janela estava fechada e a noite escura. De modo que seu reflexo era muito visível. Em meio aos cabelos emaranhados lá estava ela. Fosca, arranhada, enferrujada. Chamavam-na ‘faixa’. Para os menos conhecidos talvez até ‘chapéu’ funcionasse. Para ele não. Para ele era uma coroa.

Riu para si mesmo. Metalinguístico? Olhou para baixo, para as pernas sobre as quais repousava a bolsa. Depois olhou para frente. Perguntou-se “onde diabos estou indo?".

A resposta era simples. Embora.

O lugar cheirava a cano antigo. Daqueles que sentimos o gosto quando lavamos o rosto numa casa velha. Metálico, coça o nariz. Talvez viesse não do chão ou dos mecanismos em volta de si, que o moviam. Talvez viesse da coroa.

Ao olhar para o outro lado sem razão ocorreu que não sabia a razao pela qual olhava para todos os lados. Que janela inútil. Que bolsa inútil. Ora, que metalinguagem inútil, então, também. Onde você espera chegar com isso?

Mas a resposta é sempre simples.

Imediatamente um cutucão lhe chamou a atenção. Era um ser pequeno, do tamanho de um anão, mas magrelo. O rosto era o de um senhor magro e idoso, de nariz long, recurvado. Um cabelo curto, sedoso e cansado percorria toda a extensão do couro cabeludo até a nuca. A pele azul era poucos tons mais clara que a calça jeans rasgada que vestia e, sem camisa, marcas púrpura percorriam toda a extensão do seu corpo até chegar nas costas onde retraído estava um par de asas. O ser puxou o cinto de segurança. Olhou para cima e cumprimentou o humano de olhos estatelados.

“Boa noite, Keib”, disse sorridente

Que diabos? Perguntou-se. Olhou para frente porque estava tendo uma ilusão. Não havia ninguém ao seu lado.

“Vá se foder”, disse o diabrete ainda sorridente. “E traga-me um pedaço de limão. Quem nasceu no ar precisa ter o hálito agridoce!”

Ele ignorou novamente.

“Keib, preste atenção… você me vê e me ouve. Eu estou aqui e estou falando. Isso quer dizer que eu existo. E mesmo se eu não estivesse fisicamente sentado nessa cadeira, usando uma merdinha de uma calça jeans rasgada que aquele filho de uma vadia me vendeu por duzentos reais, eu ainda existiria. Simplesmente pelo fato de que você me vê e me ouve”.

“Mas isso não significa que você seja real. Os esquizofrênicos também enxergam gente que não existe”, replicou.

“Então por que é que você está conversando comigo?”

“Estou falando isso mais para mim, mesmo”.

Nessa mesma hora sentiu um peso no coração. Conhecia aquele papo. Aquela sensação. Até talvez aqueles argumentos. Era tudo muito familiar. Era por isso que estava onde estava. Era essa a razão de estar com uma faixa de ferro a lhe apertar as têmporas.

“Por que você está usando fones?”, perguntou o diabrete. Os fones não tocavam musica alguma. Nem sequer estavam ligadas a algo, mais. O fio percorria todo o caminho para dentro de um bolso que agora já estava vazio. Sem responder mas assim respondendo, tirou os fones, enrolou-os e os guardou no mesmo bolso que estava vazio. Agora eram parte do passado.

“É por isso que você está indo embora, não é?”, perguntou o diabrete, já sabendo a resposta.

Sim. Era por isso e por muitos outros motivos que não lhe vinham a mente. “Também, mas isso é metalinguístico. Você pode inferir. Como você se chama?”.

“Caos”, respondeu o diabrete. “Meu nome é Caos”, completou. “E vai ficar tudo bem”.

Keib olhou para ele por alguns segundos. Depois assentiu, recostou a cabeça e fechou os olhos.

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