quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Dor no pé

E
u estava correndo quando pisei no caco. Quando aconteceu, não parecia mais grave do que alguma pedra ocasional que eu pisasse. Só fui ter uma idéia do que aconteceu quando senti meu sapato mais pesado e molhado.

Parei por um instante. Ao tirar o sapato já notei a meia encharcada de sangue. Pensei ser um ferimento pequeno, mas ao mesmo tempo que raciocinei que o sangue era muito, ja havia tirado minha meia e analisado a ferida. Era pequena, mas profunda, um pouco abaixo da dobra entre o primeiro e o segundo dedo do pé.

Não soube se era uma pontada na barriga ou no machucado (ou nos dois) o que senti na hora, mas fui mancando até meus pais e mostrei o ocorrido.

Fui medicado.

Na outra semana iria para a praia. Meus pais não poderiam me deixar sozinho em casa. Minha mãe meteu inúmeras recomendações em minha cabeça, a maioria das quais foi embora no primeiro minuto em que vi o mar. O mar é excepcionalmente maravilhoso para nós, mineiros.

Logo no primeiro dia quis entrar no mar. Meu pai me advertiu quanto ao perigo, mas não resistiu ao ver minha tremenda convicção e teve pena da minha enfermidade quase incapacitante. Decidiu ele mesmo ir comigo, entenda, caso acontecesse “alguma coisa”

Fui no colo até a margem da praia, a borda entre o mar e a areia. Meu pai me colocou no chão de chinelo e com o ferimento enfaixado, mas a areia era fina e penetrou, logo nos primeiros passos, até tocar o sensível. Doeu, sim, mas não o suficiente para me derrubar.

Andamos bons cem metros de tranquilidade, conversando, até que o mar, imprevisível como só, lançou-nos uma daquelas ondas que terminam nos nossos pés, gelando-os, se ainda não estiverem molhados. A areia, se era fina e traiçoeira, nao era párea para a água e o sal que ela carregava consigo. A mistura que entrou pelo meu curativo pareceu perfurar minha pele, atravessar a carne do machucado e carcomer minha alma!

Dor, ó dor, pensei e olhei para o mar e a praia, não é você quem vai me segurar! Todos os meus heróis de infância eram fortes e suportavam a dor para chegar aonde queriam. Era apenas natural que chegasse a minha vez de experimentar o momento em que eu teria que provar para mim mesmo que era como eles.

Meti em minha mente que eu deveria ser forte. Meti em minha mente que aquela dor excruciante não era nada, era só um cortezinho no pé. Logo o pé, aquela parte esquecida do corpo da qual muitos tem até asco!

Era falho. Os argumentos insólitos que eu usava para eufemizar minha dor, na verdade, vinham e iam do mesmo jeito que os vaga-lumes piscam e somem ou que os peixes pulam e mergulham na água em um piscar de olhos. Tudo para o qual eles serviam era, ao invés de minimizar a dor, aumentá-la, teimando em me lembrar de que ela existia e estava ali, implacável, irredutível.

Eis que numa reviravolta mental, briguei com a dor. Discutimos a relação como um casal insatisfeito.

É assim, é? Você vai estragar minhas férias? Perguntei a ela. Ela só ria, como um menino levado protegido dentro de um carro. Não vai ficar assim não. E, lembrando de quanto mais alto formos, maior é a nossa queda, assenti. Sim. A dor existe. O machucado é grande, dói mesmo!

Uma das grandes formas de vencer um inimigo é juntando-se a ele. Numa fração de segundo parei de reclamar da dor, parei de mancar. Ela estava lá, ela era mais forte do que eu. De que adiantava lutar contra ela? Por que não tentar conviver com ela?

A dor, caros amigos, é uma forma do seu corpo mostrar para você que algo de perigoso o está violando. A dor não é um carma, é uma bênção, um mecanismo de defesa estrategicamente bolado.

Terminei o percurso pela praia e também as minhas férias. Eu, meus pais e minha dor.

Esses dias tenho estado apaixonado e, como muitos, não sou correspondido. A paixão é mais uma dor no pé e eu não sou um herói de desenho-animado que lutará contra ela.