domingo, 12 de setembro de 2010

Das adorações

Existem coisas que me irritam. Meter o dedinho na quina de um móvel me irrita. Barulho em demasia, gente em demasia. Já fui mais tolerante: música ruim me irrita.

Já fui mais político, mais comunista, menos velho.

Hoje me irrito com coisas menores, mas não menos mordazes. De tudo mais, talvez, me irritam adorações. Mais do que barulho, multidão e Axé. (Axé está essenciamente ligado à barulho e mulditão, então acabo achando isso redundante).

Talvez o momento não me permita pesar bem minhas irritações, mas nesse pequeno átimo que talvez não perdure, irrito-me com crentes. Irrito-me com gamers e playboys. Irrito-me sumariamente com “machinhos”.

Ma.chi.nho
adj.s.m. pop. pej. 1.da união de ‘macho’, –inho; “pequeno homem”. 2. Que ou aquele que se comporta de forma padrão pré-estabelecida (porém não necessariamente moral. v. ‘cultura de massa’). 3. Que ou aquele que se comporta baseando-se no pensamento de outrem. 4. Inculto. 5. Depr. Aquele que vangloria sobre todas as coisas isto: Mulheres, futebol, bebida álcoolica, carros e veículos, brigas. 6. Dotado de comportamento tribal.

De palavras sobre o fanatismo religioso o mundo já está cheio. Até sobre política, também. Mas o quadrilátero mulher, futebol, álcool e carros é decisivo e pouquíssimo explorado.

Quão insuportável é o indivíduo que, no meio de uma conversa – às vezes até no meio de uma frase – pára. Passa uma mulher. O homem a devora com os olhos. Percorre as curvas do corpo da fêmea babando como um cão sarnento jogado à sarjeta chuovsa de uma padaria, desejando sem sorte aquele último pedaço de pão mofado. Depois, como que reunindo todo o seu orgulho perante os outros de sua laia, vocaliza em bom tom: “MAS QUE BELO PAR DE COXAS”.

Entenda, eu, como artista, estou fadado a ver a estética de um par de coxas. Mas em verdade o grito do desamparado machinho é uma súplica. O par de coxas pode até não ter sido tão homericamente devorável. Mas o grito se fez inevitavelmente necessário porque existe ali uma batalha social entre todos os machinhos para ver quem é que é superior. Quem é que “pega mais”. Quem é mais macho. De modo que cada ímpeto de testosterona é uma chifrada vigorosa que um cervo desesperado por sua fêmea tenta investir contra o outro. Se o comentário pouquissimo sutil não existir, então certamente o machinho em questão não se interessa por pares de coxas femininos. Ou pelo menos, é esta a sua fé.

E o futebol? Novamente, imagine-se em meio a uma conversa quando aparentemente durante um jogo ouve-se uma voz ao longe que esguela algo praticamente ininteligível. Pela melodia do grito trata-se de futebol. A palavra é o nome do proprio time. O brado, aparentemente, foi por um gol, o que nem sempre é o caso. Às vezes grita-se só por gritar. Para incomodar os vizinhos do outro time. Não ter time é uma blasfêmia. Sua conversa é interrompida por um rugido animalesco, um piado, um canto que puxa outros de outras janelas não muito mais distantes. Logo vê-se um coral de gritos semi-elaborados entoando um mantra completamente ilógico. Por dentro do time que é nomeado à janela, nas entrelinhas, existe a frase pejorativa que diz “meu time é melhor do que o seu”.

E o comportamento tribal é ainda mais intensificado quando a conversa é durante um jogo. Sentam-se machinhos ao sofá, bebendo a sua cerveja, comendo o seu churrasco ou qualquer outra coisa gordurosa que terá de ser limpa não por eles outra hora. Aparentemente comportados, sociais e polidos. Guerreando polidamente sobre quem sabe mais sobre futebol. Trazendo à tona eventos de um futebol em preto e branco da tão vangloriada copa de setenta ou qualquer coisa do tipo. Isso sempre tem.

Eis que o locutor anuncia o gol. E os machinhos como que num turbilhão epilético de furor saltam das suas cascas cívicas como chimpanzés enlouquecidos por qualquer banana a eles lançada, a testosterona espirrando junto à cerveja, o suor e a gordura. Bebês choram ao serem avassalados pelos rugidos ensurdecedores iluminados pelo verde do replay na televisão.

Existe uma mágica no futebol. Sim. O jogo é guerra, é estratégia. É fabuloso. Os animais que o assistem é que não são.

Não quero falar sobre os carros e as bebidas e as brigas e tudo mais. O raciocínio é o mesmo para todas essas questões. E eu, como homem, envergonho-me do comportamento dos meus semelhantes. Aparto-me, talvez não por opção: a guerra dos sexos não se aplica a mim. Tenho de mulher a sensibilidade e o carisma e de homem o labor pela hierarquia. A vontade de ser sempre alfa.

Já sou velho e intolerante. Irrito-me, sim, com as adorações mundanas dos machinhos. Que se faça, pois, justiça. Se é que afinal de contas a luz é ser comum, e a vanguarda escuridão, que não só me irritem as convicções masculinas, mas também as minhas a eles ensurdeçam.